Olá a todos!
Bom, vamos retomar a discussão de onde paramos. No post anterior (O Acorde de Tristão - Parte 1) exemplifiquei as dificuldades de se delinear uma análise completamente satisfatória do acorde de Tristão: ele não possui uma organização simultânea tonalmente identificável e, a primeira vista, também possui incongruências melódicas. Essas incongruências melódicas se apresentam a partir da análise tonal de eventos cromáticos, ou seja, apesar de Mib e Ré# serem representações da mesma frequência no sistema de afinação temperado, quando analisados sob a trama tonal possuem funções e direcionalidades diferentes (em breve escreverei outro post para abordar esse tema e colocarei o link aqui).
Vamos, portanto, a apresentação de algumas soluções apresentadas durante os longos anos de análise do acorde de Tristão por parte de teóricos musicais.
Alguns desses teóricos consideram a última colcheia do compasso como sendo a nota do acorde. Se assim fizermos chegamos a um acorde muito simples e já conhecido: um acorde de sexta francesa que, como todo acorde de sexta aumentada, gera discórdia por parte dos teóricos, pois alguns o consideram como dominante da dominante enquanto outros como um representante da subdominante (II ou IV graus). Se essa possibilidade for considerada, temos um movimente harmônico simples de subdominante – dominante. Podemos pensar, também, que o Sol# pode, sim, ser apenas uma dissonância prolongada, como uma representação do drama como um todo, famoso pelo prolongamento de movimentos sem resolução. No entanto, o Sol# dura tempo suficiente para ser encarado como nota pertencente ao acorde ao invés de apojatura (ponto amplamente abordado por Jean-Jacques Nattiez no livro citado na primeira parte desse artigo).
Assim o acorde possui notas que o caracterizam como dominante de La menor (Si natural e Sol# convergem, por movimento contrário, em La) e possui notas que o caracterizam como sexta francesa, dominante da dominante (Fa natural e Ré# convergem, por movimento contrário, em Mi).
Portanto, uma análise pode considera-lo um acorde híbrido entre a dominante e a subdominante.
Há uma outra análise de proporções simples, a qual afirma que o acorde de Tristão é dominante com apojaturas para a fundamental (Mi, no caso), onde a quinta e terça apenas trocam de lugar na estrutura do mesmo:
Essa análise pode ser considerada como um exemplo do que Schoenberg chama de Acorde Errante, onde um mesmo acorde, dependendo de sua resolução, pode ter sua origem em qualquer tonalidade. Nesse caso um acorde meio-diminuto (errante), por alteração de meio tom em duas notas, gera um acorde dominante distante. Aqui as enarmonizações fazem sentido.
Contudo, uma explicação surpreendentemente elementar pode ser gerada através de caminhos tonais simples. Se ignorarmos os acidentes e buscarmos uma fundamental para esse acorde, se baseando no fundamento tonal de empilhamento de terças, obtemos, como única resolução possível, um acorde do sétimo grau de La menor (Sol#-Si-Ré-Fa). Acorde esse de resolução mais do que conhecida pelo sistema tonal (VII – I):
Se, no entanto, invertermos esse acorde de maneira que a sétima fique no baixo a resolução acorrerá num acorde de I grau na segunda inversão:
Como sabemos, um acorde de I grau na segunda inversão possui função de dominante com apojaturas. Logo, podemos considerar que a resolução do acorde diminutão sobre o VII grau ocorra para a dominante da tonalidade. Assim, nada nos impede de fazer um movimento de sensível para o Mi, através do mesmo procedimento que originou os acordes de sexta aumentada (colocando a sensível da dominante no acorde meio-diminuto do II grau no modo menor). Aqui, no caso, a colocação da sensível ocorre pela alteração de uma nota já existente no acorde (do mesmo modo que a colocação da sensível da dominante ocorre sobre a terça do acorde meio-diminuto no modo menor):
Assim chegamos de forma bastante simples ao acorde de Tristão, onde o I grau na segunda inversão é omitido pelo adiantamento do La natural, gerando um acorde de sexta francesa e, assim, podendo ir direto para a dominante. Finalmente a sensível descende para a sétima do acorde seguinte (movimento comum em cadências que alguns teóricos dizem se tratar de uma resolução por transferência no baixo – uma vez que o baixo do próximo acorde é a nota para a qual a sensível deveria rumar).
Acredito que após analisarmos essa hipótese podemos nos certificar de sua coerência pelo simples fato de que o acorde de Tristão, primeiro acorde da música, possui duas das alterações mais comuns em La menor (tonalidade inicial): Sol# (sensível) e Ré# (sensível da dominante). Como sabemos, o uso da sensível da dominante começou a ser empregado, ainda no classicismo, como uma forma de afirmar a tônica, pois uma vez que o discurso musical se expandiu foram necessários meios mais fortes de contrastes entre as diferentes partes da composição: no renascimento a Musica Ficta cumpriu esse papel; no Barroco a entidade da dominante se afirmou e as cadências foram criadas à medida que o discurso crescia; no Classicismo, com o advento de grandes formas, as cadências foram expandidas, gerando, entre outras relações harmônicas, os acordes de sexta aumentada; no Romantismo esses acordes foram encarados como ambíguos possibilitando, assim, modulações distantes. Quando Wagner emprega um acorde errante (usado comumente como transgressor para tonalidades distantes ou como enlace cadencial) como acorde de abertura de seu drama, o discurso se fragmenta e a harmonia se expande como nunca antes.
Confirmando esse pensamento desenvolvimentista da música tradicional européia, Schoenberg afirmava que o sistema dodecafônico por ele desenvolvido representava uma evolução natural do sistema tonal. Um pensamento semelhante possuía Anton Webern, conforme disse durante as conferências sobre “O Caminho Para a Música Nova”:
“A escala diatônica não foi inventada, foi encontrada. [...] São justamente os
harmônicos mais importantes, aqueles que estão mais próximos do som
de base, que formam a escala diatônica; algo inteiramente natural,
nada de imaginário. Mas e os sons intermediários?
harmônicos mais importantes, aqueles que estão mais próximos do som
de base, que formam a escala diatônica; algo inteiramente natural,
nada de imaginário. Mas e os sons intermediários?
Com eles começa uma nova época” (WEBERN, 1984, p.35).
A idéia de que o serialismo proposto pela segunda escola de Viena nada mais é do que a continuidade do pensamento ocidental e da observação das leis naturais dos sons é evidente na frase acima citada e, se for considerada verdadeira, não podemos deixar de atribuir grande parte dessa renovação estética a Richard Wagner e o seu Acorde de Tristão.
Fábio Scucuglia