Antes de iniciar esse primeiro post do blog, gostaria de colocar algumas questões preliminares. Por que, afinal, começarmos um blog de discussões sobre música a partir de uma análise de um único acorde escrito há mais de 150 anos? Qual a relevância de uma abordagem tão específica para os rumos que a música trilha hoje?
O acorde inicial da ópera “Tristão e Isolda” de Richard Wagner, denominado pela tradição Acorde de Tristão, tem suscitado discussões teóricas há tempos, sendo objeto de análise para muitos dos principais teóricos musicais que o sucederam. Análises essas que discutem todos os aspectos do mesmo, desde função, estrutura até duração. Acredito que toda essa atenção se deve ao fato de tal acorde simbolizar de forma clara a crise que a música tonal enfrentou na virada do século XIX para o século XX, crise sobre a qual se fundamentaram os cernes de uma nova fase da música erudita: o atonalismo.
Alguns autores (muitos deles, aliás) dedicaram algumas reflexões sobre o acorde de Tristão. Nomeadamente, Jean-Jacques Nattiez, semiólogo musical e professor de musicologia da Universidade de Montreal, em 1987 dedica um capítulo inteiro a tal acorde no seu livro Music and Discourse: Toward a Semiology of Music. Arnold Schoenberg também não se furta de falar sobre o acorde em seu Harmonielehre.
Sendo assim, por que, então, retomar tal discussão? Um acorde que gerou análises tão divergentes não pode ser deixado de lado pelo estudante de música, ainda que sirva apenas como estopim para a compreensão de uma crise harmônica, se não nossa por vivência, nossa por reflexo. Dessa forma, a ideia desse artigo é apresentar tais discussões de uma forma objetiva e clara, a fim de guiar aqueles que possuem interesse em compreender o significado dele para a história da música.
Escrita entre 1857 e 1859, a ópera Tristão e Isolda é famosa pela abundância de movimentos cromáticos e por possuir grandes arcos melódicos sem resolução. Os compassos iniciais não fogem a essa característica e podemos perceber a ambigüidade presente na harmonia tardia do século XIX. Dessa forma, antes de tudo, o acorde inicial possui características peculiares que possibilitam um foco ampliado sobre a funcionalidade do evento musical em questão, onde a sobreposição de diferentes motivos melódicos dá origem a um motivo harmônico que pontuará a obra em momentos específicos, inaugurando ou, pelo menos, afirmando uma linguagem harmônica que determinará o futuro do pensamento musical alemão – minimamente.
Para exemplificarmos a importância de tais implicações, podemos analisar as diferentes formas de expressão musical aparentes nas obras de diferentes períodos. No período barroco, época em que o conceito de harmonia, tal como o conhecemos hoje, se fortificou, percebemos obras densas onde a melodia começa a ganhar destaque sobre um baixo contínuo e o tempo harmônico é bastante acelerado. Logo, as idéias motívicas começam a se fazer presentes como meio de desenvolvimento melódico e surgem formas onde a idéia de desenvolvimento motívico é essencial (como a fuga e o ricercare, por exemplo). No entanto, no classicismo, com o sistema tonal completamente estabelecido e o conceito de harmonia presente por completo, a linguagem se modifica. O baixo contínuo praticamente desaparece e a possibilidade de modulação permite a expansão formal das obras. Assim, o conceito de motivo é bastante influenciado, podendo esse ser mais longo, menos denso e é bastante comum o aparecimento de diversos motivos diferentes. Na forma sonata, por exemplo, a criação de diferentes motivos é um fator importantíssimo para a estrutura formal da obra. Quando Wagner não especifica a tonalidade da obra, iniciando-a com o que parece ser um movimento tipicamente modulatório, certamente as implicações teóricas são inevitáveis. Segue abaixo o trecho em questão:
Sendo assim, numerosas análises do trecho inicial da ópera surgiram desde então. Grande parte dessas análises chega a conclusão de que o acorde em questão é a dominante da dominante ou um representante da subdominante (II ou IV graus). Em todos esses casos existe uma relação fundamental tornando as análises não tão distantes: a relação entre o IV grau, o II grau e a dominante da dominante é extremamente próxima, uma vez que, funcionalmente, todas precedem a dominante na cadência. Tal especulação traz a tona uma outra questão: a tonalidade do trecho musical o qual ele se insere. Muitos fatores levam a crer que o trecho encontra-se na tonalidade de La menor: a obra começa com a nota La, realizando um salto bem característico da tonalidade de La menor: La – Fa – Mi; o trecho repousa sobre um acorde de Mi maior com sétima menor, dominante de Lá menor; as alterações no acorde de Tristão são alterações primárias em La menor (Sol# - sensível de La – e Ré# - sensível de sua dominante).
É muito comum encontrarmos em livros de harmonia modernos análises do acorde de Tristão que priorizam apenas sua disposição intervalar, a qual consiste em um intervalo de trítono seguido de um intervalo de terça maior e de um intervalo de quarta justa. Através desse tipo de análise constata-se que esse mesmo acorde já havia ocorrido anteriormente em obras de outros autores desde o Renascimento. Contudo, uma análise dessa natureza do acorde de Tristão, levando em conta apenas a distância intervalar entre as notas constituintes do mesmo, não só é inadequada a análises de músicas desse período, uma vez que sistemas analíticos dessa natureza surgiram pela necessidade diante à observação de sistemas composicionais do século XX, como também se mostra insuficiente no que tange à funcionalidade, ainda tonal, do acorde. Assim, ao dizer que o acorde Fa-Dob-Mib-Lab, o qual aparece, por exemplo, na sonata op.31 nº3 de Beethoven e em diversas outras obras desde o período barroco, é o mesmo que o acorde de Tristão, Fa-Si-Re#-Sol#, estamos ignorando, além das características funcionais do acorde, a natureza tonal do mesmo.
Se aceitarmos a enarmonização do acorde de Tristão, obtemos um simples acorde meio-diminuto sobre o VI grau de La menor, onde o Mib é justificado pelo movimento descendente que o segue. No entanto, dessa forma, teríamos “problemas” na condução do Dob, que se “transforma” em Si natural no acorde seguinte, e com o Lab que caminha ascendentemente ao La natural, conforme mostra o exemplo a seguir:
Assim, pode-se justificar a escrita original de Wagner tomando como base a condução melódica das vozes. Porém, o Ré# escrito no lugar do Mib se torna um novo empecilho devido ao seu caminhar descendente (movimento esse comum em determinados movimentos cadenciais, os quais podem ajudar sobremaneira na compreensão do acorde de Tristão).
Logo, chegamos a um ponto onde é possível enxergar claramente a dificuldade de compreensão do acorde de Tristão: é impossível nomeá-lo como uma identidade vertical tonalmente conhecida e, ao mesmo tempo possui uma condução melódica, a primeira vista, injustificável tonalmente (Ré# - Ré natural).
Se levássemos em conta a condução melódica sem pensarmos numa resolução vertical, poderíamos escrever o acorde da seguinte maneira, onde o Sol# segue para o La natural e o Mib para o Ré natural:
No entanto Wagner abre mão dessa suposta coerência melódica escrevendo o Ré# no lugar do Mib. Isso só pode significar que o Ré# possui uma importância a ser considerada na estrutura do acorde.
Vamos terminar por aqui essa primeira parte do artigo. Temos muitas informações relevantes para levarmos em conta já. Em breve postarei a continuação com algumas análises possíveis para decifrarmos os problemas aqui apresentados.
Até logo!
Um comentário:
Ótima Analise Fabio, obrigado!
Postar um comentário